sexta-feira, 26 de março de 2010

Pregação ou Infração?

Tenho o costume de viajar de trem porque o considero um meio de transporte rápido e eficaz, apesar de pegar de vez em quando umas sucatas que sacolejam tanto que mal dá para ler ou tirar uma soneca.
Numa destas manhãs de outono, estou eu indo para Bangu, onde trabalho. Como de sempre embarquei no trem das 6h, cujo horário é o ideal, pois chego sempre com uns minutos de antecedência. Desço correndo as escadas da estação, um tanto atrasado, e sem perceber entro no vagão destinado às mulheres. Já faz um bom tempo que os homens não respeitam mais este privilégio feminino (e bem dado!) e ficam ali, tranquilos, como se nada estivesse acontecendo.
Não percebi ao entrar, somente depois que as portas estavam fechadas, que ali ocorria um culto evangélico. O pastor chamava-se Ari Coutinho e sei disso porque ele fazia questão de dizer seu nome. Sua pregação chamou-me a atenção, não pelo conteúdo, mas pelo tom de voz. Era jovem, uns trinta anos, voz aguda, mas firme e demonstrava conhecimento sobre as escrituras bíblicas, citando versículos para cada passagem de sua vida que contava. E como era disposto! Falava rápido e alto, puxando muito ar. Suas veias do pescoço destacavam-se pela cor vermelha e pelo tanto que levantavam a pele. Em determinados momentos perecia em êxtase, em transe. As pessoas que o rodeavam, uma por gostarem, outras por quererem ouvir a palavras e outros, como eu, por mero acidente, procuravam resignarem-se.
Porém, o que chamou minha atenção foi um de seus depoimentos pessoais, uma fala sua que não deveria ser dita, pois contradisse tudo o que estava pregando:
- Eu era um pecador e um infrator. Hoje não peco nem infrinjo mais. Agora sou um homem de Deus!
Eis aí o paradoxo.
Ora, desde 2009 que estão proibidas por lei quaisquer manifestações religiosas, justamente por causa dos excessos cometidos por certos grupos que resolveram transformar os vagões em extensão de suas igrejas. E a Supervia espalhou cartazes bem legíveis em todos os lugares com o número da lei, seu conteúdo e as penalidades para quem a infringe. Será que ele não viu?
O vagão é para as mulheres e há um cartaz próximo à entrada de cada porta, rosa, bem grande, informando os horários destinados para este fim. E também foi criado por lei estadual! Será que também não viu ou é mais fácil amealhar as mentes femininas e as dos mais humildes?
Também creio que ele não percebeu que estava infringindo o direito daquelas pessoas que fazem dos bancos do trem um pedaço de suas camas, pois acordam muito cedo e aquela horinha de sono é providencial. Quem consegue pregar os olhos com tanta gritaria?
Os leitores (e aí entro eu) também se sentem incomodados com o burburinho, com aquela martelação na cabeça que nos impede de concentrar. Não dá para ler o jornal, quanto mais o livro, por mais que nos esforcemos. Parece um punhal entrando em nossos ouvidos. Esta infração ele não percebe que está cometendo, mesmo vendo que em sua volta há várias pessoas nesta situação.
E assim chega a estação que descerei. O pastor segue sem cometer nenhuma infração e resolvo escrever sobre esta hipocrisia de considerar que o erro é sempre o outro que comete. Ele deve pensar que tem o aval de Deus para fazer o que quer, como quer e no lugar que quiser. E os outros?
- Ah! Os outros são os outros.

Sergio Batista da Silva, Minhas Crônicas, 2010.

2 comentários:

  1. Meu amigo e admirável professor;
    que comentário preconceituoso!
    O Sr. é um formador de opnião e tem um legado monstruoso pela frente. Não se deixe persuadir!
    Imagine que, ao viajarmos em nosso trem, vemos pessoas por todos os lados. Elas estão conversando, lendo, comendo, recebendo quem chega e despedindo-se de quem vai. Carregam consigo objetos como: revistas, livros, malas, bolsas, roupas, telefones e aparelhos de som portáteis. Caso perguntemos a ocupação delas, poderão responder que são médicos, engenheiros, advogados, artistas, alfaites, professores, comerciantes, operários, etc. Algumas são da Região Sudeste. Outras terão vindo do Norte, Nordeste, Sul ou Centro-Oeste, com sotaques e hábitos característicos de sua terra. Poderemos encontrar até mesmo estrangeiros que não falam português e que têm costumes bastantes diferentes dos brasileiros. Alguns passageiros poderão sentar ao nosso lado nessa viagem e puxar conversa sobre futebol, música, telenovela, filme, teatro, política e outros tantos assuntos do nosso conhecimento - ou não. Do mesmo modo, poderemos conhecer gente de todo tipo, que nos causa simpatia ou repulsa.
    Em tudo isso, você pode perceber ao menos um coisa: as pessoas possuem modos distintos de ser, pensar e agir, que variam de acordo com o lugar em que vivem. Isto é liberdade de expressão.
    O tom de voz incomoda menos que o batuque dos pagodeiros; o que estava sendo dito talvés fosse menos agrassivo que as letras dos funks que fazem apologia às drogas/crimes/sexualidade, empobrecendo nossa sociedade de valores éticos e morais. Não acredito que na estratégia de evangelização do tal pastor caiba a ideia de começar pelo vagão das mulheres porque "elas são menos inteligentes" ou "os humildes mais facilmente manipuláveis".
    Sendo assim, meu velho amigo, sua experiência de vida já deve ter lhe iluminado a tolerância e à diversidade cultural. Um abraço.

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  2. Marcelo, não é preconceito. É realidade. E eu teria feito a mesma crônica caso a manifestação fosse de qualquer outra origem. Ocorre que foi esta prática que gerou ação do MP, pois as pessoas, sentindo-se incomodadas, partiram para a violência, numa tentativa desesperada de fazê-los entender que ali não é o lugar adequado nem a hora é apropriada. As manifestações em praça pública não geram tais problemas porque se aproxima quem quiser ou quem gosta. No trem não. Não há escolha. Ou se ouve ou se ouve. Quanto ao tom da voz, nunca vi, pelo menos de manhã, pagodeiros, funkeiros, católicos, umbandistas ou afins.
    Por isso, amigo Marcelo, não há preconceito nas minhas palavras. Há a constatação de um paradoxo entre o que se prega e o que se faz, entre o propagar e o afastar, entre colocar o individual em detrimento do coletivo.
    Forte abraço,

    Sergio

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