sexta-feira, 7 de maio de 2010

Textos para estudos

O Valente


Chegou a cidadezinha de Pedras Altas numa chuva antiga. Em boa sela e melhor estribo veio ele. Falava pelo canto da boca – do outro lado da brasa do seu charuto espiava o mundo. No Hotel Chic, tirando uma pesada e alentada garrucha, deu nome e patente:
- Sou o Capitão Quirino Dias.
Mandou que arrumassem o seu baú de viagem dentro do maior cuidado:
É tudo munição, coisa de muita responsabilidade.
A cidadezinha de Pedras Altas viu logo que estava diante de um pistoleiro de marca. E isso ganhou raiz quando um tropeiro, indo ao Hotel Chic levar a encomenda de boca, espalhou que o sujeitão do charuto era um perseguido da Justiça, que matava pelo gosto de ver de que lado o cristão caía:
- Vou simbora, que esse capitão é o capeta.
E foi. Atrás da poeira do tropeiro a fama de Quirino Dias cresceu. No Hotel Chic o melhor prato era pra seu dente, o melhor doce era para sua língua. De tarde, em cadeira da palhinha, o capitão montava a sua pessoa na porta da rua. Pedras Altas passava por ele de cabeça baixa, acanhada, fazendo questão de saudar o pistoleiro. E no dia em que bebeu cachaça, com pólvora, na vista de todo o Hotel Chic, então não teve mais tamanho a sua fama. Bebeu e disse:
- Tenho trabalho longe. Só volto na semana entrante.
No quarto, remexeu o baú, limpou a garrucha e sumiu nas pastas de seu Brasino. O povo comentou:
- É viagem de tocaia.
Foi e voltou dentro do tempo estipulado. De novo montou seu charuto na porta do Hotel Chic. Com o rolar dos dias, o capitão ficou mais exigente. Uma tarde, como não apreciasse o canto choco de certo galo-capão, foi ao quarto, mexeu no baú e despejou dois tiros no infeliz. Fez o mesmo com um bem-te-vi que gozava as suas tardes fagueiras em galho de jaqueira. Desde essa precisa hora em diante, toda vez que o capitão ameaçava recorrer ao baú, Pedras Altas tremia:
- Capitão, não faça isso, capitão tenha dó.
A bem dizer, a cidadezinha era dele. Seus pedidos de dinheiro corriam nas pernas dos moleques de leva-e-traz. E era quem mais queria municiar o capitão, no medo de que fosse ao baú. Ele mesmo dizia pelo canto desocupado da boca:
- Não abro aquela peça sem ganho.
Aconteceu, então, o caso da onça. A notícia veio ligeira e ligeira arou no Hotel Chic. A pintada fazia e acontecia, comia bezerro com casco e tudo. O recadeiro mediu o tamanhão da bichona:
- É de porte alentado, para mais de duzentas arrobas.
Pedras Altas riu da onça, da desgraça da onça. Tanto pasto para vadiar e logo onde veio a pobre tirar carta de brabeza! Em Pedras Altas do Capitão Quirino Dias! Pepito Rosa, dono de um comercinho de cachaça, riu da pouca sorte da onça:
- Vai ser azarada assim na casa dos capetas.
Uma embaixada de coronéis, com todos os seus pertences, na mesma tarde foi pedir a Quirino Dias providências contra a onça. Logo na abertura da conversa, o capitão arregalou os olhos e gritou:
- Onça? Está dando onça em Pedras Altas? Socorro! Quero lá saber disso!
E a cidade inteira viu assombrada, de queixo caído, o pistoleiro sumir de ladrão, fugindo nos cascos de seu cavalo. Nem teve tempo de levar o baú, uma peça de folha onde o capitão guardava suas bugigangas – pentes, rendinhas, frascos de cheiro, alfinetes e águas de moça. Quirino Dias era caixeiro viajante.

(Crônicas exemplares. Edições de Ouro, Rio de Janeiro, 1976)
1. O personagem foi reconhecido por valentão por várias razões. Assinale a exceção:

a) pelo jeito de falar pelo canto da boca;
b) pela presença da garrucha “ pesada e alentada”;
c) pelo fato de fumar charuto cuja brasa “espiava o mundo”;
d) pela carga que levava: munição;
e) pela atitude de comando.

2. Assinale a afirmativa que não está de acordo com a seguinte frase: “ Vou simbora, que esse capitão é o capeta.”

a) É afirmação do tropeiro, assustado pela fama de valente do Capitão Quirino Dias.
b) Mostra certa falta de cultura por parte do tropeiro, já que comete erros de português.
c) Deveria ser substituída por: “Vou-me embora, que esse capitão é o capeta.”
d) O capeta foi considerado como símbolo de poder e maldade.
e) O tropeiro pensou que o Capitão estava possuído pelo demônio.

3. “ Pedras Altas passava por ele de cabeça baixa...” “ Nesta frase você pode notar um processo muito comum na linguagem literária. O Autor usa o nome da cidade em lugar de dizer, por exemplo, “ as pessoas da cidade”. Em outras palavras, ele emprega “ o todo” ( a cidade) pela “parte” (somente as pessoas da cidade). Este mesmo processo não se encontra em que frase abaixo?

a) “... na vista de todo o Hotel Chic...”
b) “... a brasa do seu charuto espiava o mundo.”
c) “... era um perseguido da Justiça.”
d) “ no Hotel Chic o melhor prato era para seu dente...”
e) “ Pedras Altas riu da onça, da desgraça da onça...”

4. Do mesmo modo, o Autor pode usar a “parte” em lugar do “todo”, processo igualmente utilizado em linguagem literária. Assinale a frase abaixo em que não se vê esse processo:

a) “Em boa sela e melhor estribo veio ele”.
b) “Falava pelo canto da boca”.
c) “... a brasa do seu charuto espiava o mundo”.
d) “No Hotel Chic o melhor prato era para o seu dente...”
e) “De novo montou seu charuto na porta do Hotel Chic”.

5. Qual a finalidade do episódio da onça?

a) mostrar que o Capitão Quirino Dias tinha medo de animais selvagens;
b) indicar que o local onde se desenrolou a estória era no interior do Brasil;
c) provar que o Capitão Quirino Dias era caixeiro-viajante;
d) comprovar a desconfiança dos coronéis de que o Capitão não era quem dizia ser;
e) demonstrar que o Capitão não era valente.

Nenhum comentário:

Postar um comentário